sexta-feira, janeiro 05, 2007

Chuva

Por V. Rapchan

É engraçado como a chuva muda as cidades e as pessoas. As ruas ficam vazias, as pessoas perdem a vontade. Tudo é espera. Lembro de tomar banho de chuva quando criança. De fazer barcos de papel e segui-los pelos cantos das ruas. Mais ninguém. Talvez uma ou outra criança com a mesma idéia e só. O primeiro dia do ano amanheceu chuvoso. Mais velho, agora me escondo da água. Descobri a pouco que o Cine Guarani foi demolido. Demolido para sempre. Não era grande parte da memória da minha infância, confesso. Minhas lembranças estão abarrotadas de sorvetes na praça e carrinhos de rolimã. Assisti lá poucos filmes. Talvez dois ou três. Lembro dos gritos de outras crianças, de pé em cadeiras com o dobro de seus tamanhos, sonhando com mundos projetados no escuro. Lembro também de minhas mãos enfiadas em gigantes sacos de pipoca doce. E nada mais. Faço força. Não consigo. Minha memória é pequena e minhas mãos cresceram. Dizem que quando a gente cresce o mundo ao nosso redor encolhe. Tenho minhas dúvidas. Descobri que não entendo de tamanhos. Sempre achei que a memória da minha cidade fosse maior. Algo grande o suficiente para abarcar todos os encontros e desencontros. Todos os primeiros beijos e grandes estréias. Todos os choros, verdadeiros e falsos, que um dia tomaram lugar no Cine Guarani. Sempre imaginei que meus pais e seus amigos colecionassem tais lembranças. Parece que não. Estão cansados demais. Ocupados em transformar as próprias vidas enquanto o passado, transformado em entulho e pó, lhes escapa das mãos. Apostam tudo no mesmo cavalo que pisa seus jardins, em uma pista de corrida cuja linha de chegada não conseguem enxergar. Seus filhos, do fundo de seus quartos, conversam pelo computador com amigos que moram a duas quadras de suas casas. Combatem em jogos eletrônicos forças terroristas para as quais sua cidade nunca terá valor estratégico algum. Esperam um futuro visto na televisão que custa a chegar. E enquanto a chuva cai, assistem de suas janelas molhadas a cidade mudar. Tenho pouca parte nisso tudo. Não moro mais aqui. Os cenários de minhas lembranças hoje são desertos. Piscinas vazias. Clubes fechados. Praças fantasmas. Queria poder culpar alguém. Gritar palavras duras. Mas na chuva as palavras ecoam pouco. Talvez eu seja apenas um filho ilegítimo de minha era, despreparado para o futuro e para o progresso. Talvez não tenha estômago suficiente para os sacrifícios necessários. Queria ser capaz de descobrir em que momento o Cine Guarani perdeu seu valor, e até quando a cidade resistirá a toda esta água. No fundo sei de pouca coisa. Em dias de chuva tudo fica mais vazio, mais escuro, mais confuso. E na cidade onde cresci, há muito tempo chove sem parar.
Comentários
o dia amanheceu chuvoso na Patagónia?
 
é gostoso ficar com a dona Sandra agarradinho, enquanto a chuva cai devagarzinho fora do Banco do Brasil...
 
O Rapchan dá pra um bom redator.
 
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